Efeito da radioterapia na dentina radicular
O câncer de cabeça e pescoço pertence ao grupo de tumores que afeta a cavidade oral, faringe, laringe, cavidade nasal, seios paranasais, tireoide e glândulas salivares. Ele é o sétimo grupo de neoplasias mais frequentes do mundo, com incidência anual de aproximadamente 640.000 casos.
O tratamento desse tipo de câncer pode englobar cirurgia, radiação e quimioterapia, ou a associação dessas técnicas. A radioterapia é um tratamento local que emprega ondas eletromagnéticas que conduzem energia e não possui massa. O tratamento padrão é uma dose final total que pode variar entre 40 Gy (gray) e 70 Gy (gray), sendo dividida em doses diárias.
Apesar da vantagem de preservar estrutura de tecido, a radioterapia em pacientes com câncer de cabeça e pescoço geralmente resulta em complicações orais.
Essas complicações causadas pela radiação ocorrem após o tratamento com a radioterapia, sendo as mais comuns a xerostomia, mucosite, candidíase, disgeusia, perda do paladar, trismo e cárie de radiação.
Tratamento Endodôntico em Pacientes submetidos a Radioterapia
Levando em consideração as modificações no tecido dentário em pacientes submetidos à radioterapia de cabeça e pescoço, é natural presumir que esses indivíduos estejam mais vulneráveis ao desenvolvimento de alterações pulpares, podendo ser necessário o tratamento endodôntico.
Em pacientes submetidos à radioterapia, evita-se a extração de dentes e preferencialmente opta-se pela recuperação de dentes cariados, e mantendo-os em função. Dentes que perderam ampla área de estrutura coronal são restaurados com pinos intrarradiculares após tratamento endodôntico.
Pinos de fibra de vidro são pinos pré-fabricados que promovem menos tensão no interior do canal radicular e menor deformação estrutural, diminuindo o risco de fratura radicular, além de possuir interação com cimentos resinosos.
Alterações na Dentina
O estudo de 2018, “Radiotherapy alters the composition, structural and mechanical properties of root dentin in vitro” mostrou que a exposição à radiação afetou a composição química, estrutural e as propriedades mecânicas (dureza de superfície) da dentina radicular.
Eles irradiaram amostras de dentina com 55 Gy e 70 Gy. Alterações morfológicas foram observadas em Microscopia Eletrônica de Varredura (MEV). Ocorreram mudanças na morfologia da dentina em ambas as amostras irradiadas. As imagens sugeriram que a radiação induziu desidratação na dentina, indicada pela presença de rachaduras ao redor dos túbulos.
Antes da radiação, os túbulos dentinários foram classificados como “regulares”. Após 55 Gy de irradiação, os túbulos dentinários foram parcialmente obliterados, e após 70 Gy, foram totalmente obliterados. A presença de trincas e fissuras foi classificada como “ausente” para dentes não irradiados e “presente” para dentes irradiados.
Resistência adesiva
No mesmo ano, outro estudo “Longevity of bond strength of resin cements to root dentine after radiation therapy” avaliou a resistência de união e a adaptação de cimentos resinosos imediatamente após radioterapia e 6 meses depois da irradiação. As amostras receberam uma dose cumulativa de radiação de 60 Gy e foi observado que os dentes submetidos à irradiação apresentaram menor resistência adesiva quando comparados aos dentes não irradiados.
A avaliação após 6 meses demonstrou menores valores de resistência adesiva em comparação aos valores imediatos, tanto para dentes irradiados quanto para não irradiados.
Além disso, o teste estatístico do qui-quadrado revelou que os dentes irradiados apresentaram mais falhas de adesão em comparação aos dentes não irradiados.
Quanto aos terços radiculares, houve mais falhas adesivas na dentina no terço cervical e mais falhas adesivas no pino de fibra no terço apical. Nas imagens em MEV foram observadas fraturas, microfraturas e menos fibrilas colágenas em dentes irradiados.
A resistência de união dos cimentos resinosos à dentina radicular foi avaliada por meio de um teste push-out, pois determina a resistência de união nos diferentes terços do canal radicular. Os resultados do teste mostraram que, independentemente do cimento resinoso ou do tempo de avaliação (imediato ou após 6 meses), os dentes submetidos à radioterapia apresentaram menores valores de resistência adesiva.
Esses resultados podem ser justificados pela desproteinização e fragmentação da rede de fibrilas colágenas da dentina, ou pelas alterações químicas, como redução de Ca e P.
Já a análise qualitativa por MEV revelou a existência de fraturas e microfraturas na dentina radicular de dentes irradiados, que podem estar relacionadas à deformação gerada na estrutura dentária durante o tratamento endodôntico e no preparo para o pino.
Durante o preparo químico-mecânico do canal radicular, foi utilizado um instrumento com cinemática reciprocante, que está associado à formação de microfraturas na dentina radicular, devido à cinemática que fornece o movimento no sentido anti-horário (ação de corte) e no sentido horário (liberação do instrumento) desenvolvido para evitar fadiga cíclica, além do transporte transversal de detritos das áreas apicais de tensão, que podem gerar defeitos na dentina radicular.
Alterações estruturais na dentina radicular associadas ao estresse causado pelo preparo endodôntico e do preparo para o pino tornam o dente mais suscetível a fraturas e microfraturas, o que justifica a presença de defeitos na adesão da dentina após o teste de resistência de união.
Uma redução significativa da força de união foi encontrada após 6 meses, para os grupos irradiados e não irradiados.
A perda de retenção do pino foi relatada como a falha mais comum em restaurações ao usar cimentos de resinas convencionais associados a sistemas adesivos de condicionamento ácido total e autocondicionantes, bem como cimentos de resina auto-adesiva, uma vez que a interface adesiva é exposta a mecanismos de degradação do colágeno exposto por metaloproteinases e catepsinas de cisteína ao longo do tempo.
Portanto, o uso de inibidores de metaloproteinase, como a clorexidina, tem sido proposto como alternativa para melhorar a longevidade da interface adesiva, que também pode ser uma alternativa para melhorar a longevidade da interface adesiva em dentes anteriormente submetidos à radioterapia.
Efeitos em cimentos obturadores
Igualmente, um estudo de 2015, “Influence of therapeutic cancer radiation on the bond strength of an epoxy- or an MTA-based sealer to root dentine” avaliou a interface cimento/dentina por MEV em dentes submetidos a radiação e obturados com dois cimentos endodônticos diferentes.
Distribuídos em dois grupos, um grupo de dentes não foi irradiado e o outro grupo foi submetido a uma dose cumulativa de 60 Gy. Após a radiação, cada grupo (irradiado e não irradiado), foi redistribuído em 2 subgrupos, cada subgrupo obturado com um dos cimentos pela técnica de cone único. Um grande número de regiões contendo fendas foi encontrado na interface cimento/dentina nas amostras irradiadas em comparação com as amostras não irradiadas, independentemente do cimento e não foi observada formação de tags nas amostras irradiadas.
O estudo observou menor resistência adesiva à dentina intraradicular nos dentes submetidos à radiação em comparação aos dentes não irradiados, independentemente do cimento e do terço radicular.
Possivelmente, isso está relacionado a alterações na ultraestrutura da dentina, como: desproteinização e fragmentação da rede de fibras colágenas; alterações na dentina intertubular, peritubular e intratubular; obliteração dos túbulos dentinários; e indução e ativação da expressão da matriz de metaloproteinase (MMP).
A análise complementar em MEV também revelou um número maior de regiões contendo fendas na interface cimento/dentina nas amostras irradiadas. A integridade dessa interface é importante para a manutenção do selamento, reduzindo o risco de recontaminação que pode levar à falha do tratamento endodôntico.
Durante a polimerização do componente resinoso, a tensão de contração aumenta gradualmente e o cimento obturador tende a se desprender da interface cimento/dentina, produzindo lacunas.
Convém ressaltar que, no estudo em questão, a obturação radicular foi realizada pela técnica de cone único, o que deixa uma área maior para o cimento, principalmente nos terços coronal e médio da raiz, que apresentam morfologia irregular. Isso poderia aumentar a força de contração de polimerização, favorecendo o desprendimento.
Apesar disso, a resistência de união do material obturador foi maior no terço coronal em comparação aos terços médio e apical. Esse resultado pode ser explicado pelo menor número e pequeno diâmetro dos túbulos dentinários na região apical, reduzindo a penetração do cimento, responsável pela adesão do material obturador às paredes da dentina.
Radioterapia e Selamento Apical
Uma vez que o objetivo da terapia endodôntica é limpar e desinfectar o sistema de canais radiculares, bem como selar todos as portas de entrada para impedir a reinfecção. Os materiais obturadores do canal radicular devem criar uma vedação adequada entre o sistema do canal radicular e os tecidos periapicais.
Contudo, a infiltração apical é uma causa comum de falha clínica do tratamento endodôntico fazendo com que estudos de microinfiltração das propriedades de selamento de materiais endodônticos sejam fundamentais.
É fato que o número de pacientes com câncer vem aumentando continuamente e esses pacientes podem necessitar de tratamento endodôntico. Como já mencionado, a radioterapia pode resultar em efeitos colaterais nos tecidos duros dos dentes, além de causar uma redução significativa na microdureza da dentina.
Desta forma, também de 2015, o estudo “Effect of radiotherapy on the sealing ability of temporary filling materials” avaliou a influência da radioterapia na capacidade de selamento apical de três cimentos obturadores à base de resina. Logo, todos os dentes foram primeiramente instrumentados e obturados, e posteriormente um grupo de amostras recebeu irradiação, com uma dose total de 60 Gy.
Os grupos submetidos à radioterapia tiveram infiltração apical média ligeiramente maior quando comparados aos grupos que não receberam radiação, mas não foi observado diferença estatística entre os grupos. Nesse estudo, a capacidade de ligação dos cimentos não foi afetada pela radioterapia e não houve diferença na infiltração apical entre as amostras dos grupos irradiados e não irradiados.
Considerações finais
Enfim, a radiação afeta a composição química, estrutural e as propriedades mecânicas da dentina radicular, causando obliteração nos túbulos dentinários, trincas e fissuras. Sendo assim, podemos concluir que a radioterapia antes da cimentação de pinos de fibra de vidro com cimento resinoso interfere na resistência de união do pino.
Quanto aos cimentos obturadores, a radiação antes da obturação dos canais esteve associada à menor resistência de união independente do cimento utilizado e à formação de mais fendas na interface cimento/dentina.
Referências:
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