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Atendimento odontológico a pacientes com hemofilia e doença de Von Willebrand

Atendimento odontológico de pacientes hemofílicos

De acordo com o último levantamento feito em 2021 pelo Ministério da Saúde, atualmente existem cerca de 30 mil pessoas portadoras de coagulopatias e demais transtornos hemorrágicos no Brasil. 

Dentre as coagulopatias hereditárias, destacam-se as hemofilias do tipo A e B e a doença de Von Willebrand, que apresentam características clínicas muito semelhantes. 

Mas, afinal, quais cuidados o cirurgião-dentista deve tomar ao atender pacientes portadores de coagulopatias? Existem riscos envolvendo cirurgias, técnica anestésica e demais tratamentos odontológicos? 

Leia a matéria e saiba tudo sobre esse importante tema! 

O que é hemofilia? 

A hemofilia é uma doença hereditária que prejudica a coagulação sanguínea. 

Embora pouco conhecida, afeta cerca de 13 mil brasileiros, fazendo com que o Brasil ocupe o posto de quarto país com a maior população de hemofílicos no mundo.  

Existem dois tipos de hemofilia: a hemofilia do tipo A e a do tipo B, classificação feita com base na ausência de um determinado fator da coagulação.  

Estas são as mais comuns das coagulopatias hereditárias, como pode ser observado na tabela a seguir: 

A hemofilia A ocorre quando o indivíduo possui deficiência do fator VIII e a hemofilia B quando falta o fator IX, os quais atuam na coagulação do sangue.  

A falta desses fatores ocorre devido a uma mutação genética localizada no cromossomo X, podendo ser transmitida dos pais para os filhos.  

Em geral, as mulheres não desenvolvem a doença, mas podem ser portadoras da mutação, sendo essa uma condição que se manifesta quase exclusivamente no sexo masculino.  

Logo no primeiro ano de vida, os episódios de sangramento podem ocorrer sob a forma de equimoses (manchas roxas). 

Em quadros mais leves, o sangramento ocorre em situações específicas, como em cirurgias. 

Porém, os sangramentos podem tanto surgir após um trauma ou sem nenhuma razão aparente, atingindo também as mucosas, como nariz e gengiva. 

Dor forte, aumento da temperatura e restrição de movimento são os principais sintomas.  

Nos casos graves e moderados, os sangramentos mais comuns são a hemorragia intramusculares e intra-articulares, sendo joelho, tornozelo e cotovelo as áreas de maior comprometimento. 

O tratamento ocorre por meio da reposição do fator de coagulação deficiente através de concentrados de fator VIII (para hemofilia A) ou IX (para hemofilia B) por injeção venosa.  

O que é doença de Von Willebrand? 

A doença de Von Willebrand é uma coagulopatia também hereditária decorrente da deficiência quantitativa e/ou qualitativa de um ou mais fatores de coagulação (Fator de Von Willebrand).  

A doença ocorre igualmente em pessoas do sexo feminino e masculino e os sintomas variam dependendo da gravidade. 

Tanto mulheres quanto homens podem ter hemorragias nasais (epistaxes) frequentes e prolongadas, manchas roxas (equimoses) e sangramento excessivo após procedimentos cirúrgicos.  

Além disso, mulheres podem sofrer grandes hemorragias menstruais e problemas de sangramento durante e após o parto. 

A doença de Von Willebrand é considerada de difícil diagnóstico, sendo necessário a realização de vários testes laboratoriais em função da flutuação dos níveis do Fator de Von Willebrand.  

Quando um membro da família é diagnosticado, outros familiares que apresentem sintomas também devem ser investigados, uma vez que se trata de uma doença hereditária. 

Geralmente, a doença de Von Willebrand apresenta uma ocorrência de sangramentos mais leve que a hemofilia. 

Isso permite que episódios hemorrágicos envolvendo pequenas contusões não necessitem de tratamento médico, pois desaparecem por conta própria. 

Além disso, alguns hematomas podem ser controlados com aplicação de gelo e elevação do membro afetado. Já sangramentos de pequenos cortes podem ser contidos aplicando pressão.  

Sendo assim, o tratamento adequado irá variar de acordo com o tipo e a intensidade da doença de Von Willebrand. 

Assim como a hemofilia, a doença de Von Willebrand não traz qualquer alteração que interfira na saúde bucal, ao considerar os índices epidemiológicos. 

O que permite que todo e qualquer tratamento odontológico, quando necessário e bem indicado, possa ser realizado em pacientes portadores dessas coagulopatias. 

No entanto, ainda existem muitos mitos envolvendo o tratamento odontológico, devido ao receio de sangramentos ou quadros hemorrágicos que não possam ser controlados em consultório ou que coloquem em risco a saúde e bem-estar destes pacientes.  

Anamnese e identificação da doença 

A abordagem odontológica ao portador de uma coagulopatia hereditária deve ser a mesma que para qualquer outro paciente, considerando que é de extrema importância que o cirurgião-dentista esteja sempre atento a qualquer alteração de saúde de seus pacientes. 

Esse cuidado só é possível mediante uma boa anamnese, sendo fundamental que o profissional tenha conhecimento sobre o diagnóstico, tratamento e proservação do seu paciente, e consequentemente saiba quais os cuidados básicos que devem ser seguidos no tratamento odontológico.  

Prescrição medicamentosa 

Caso seja necessário, o controle da dor em pacientes portadores de coagulopatias deve ser feito com derivados de paracetamol e/ou dipirona.  

A aspirina e seus derivados são contraindicados devido a suas atividades inibitórias da agregação plaquetária.  

Vale ressaltar que o uso de anti-inflamatórios nesses pacientes deve ser restrito, visto as atividades anti-agregantes de alguns tipos.

Técnica anestésica  

As técnicas anestésicas de bloqueio devem ser evitadas, dando-se preferência às anestesias infiltrativas, intrapulpar e intraligamentar.  

As técnicas alternativas, tais como sedação consciente com benzodiazepínicos ou analgesia com óxido nitroso podem ser empregadas para controle do medo e da ansiedade, e para reduzir a quantidade de anestésico.  

Em relação à técnica anestésica de bloqueio do nervo alveolar inferior, recomenda-se que sua utilização seja precedida por reposição dos fatores de coagulação, a fim de se elevar o fator deficiente a 30%.  

Esta recomendação é feita devido à possibilidade de sangramento na região retromolar, com presença de trismo e risco de asfixia.  

No entanto, a prescrição dos fatores de coagulação deve ser feita pelo médico hematologista, após discussão do caso com o cirurgião-dentista.  

Quanto ao tipo de anestésico local, não há nenhuma limitação, embora aqueles com vasoconstritores possam fornecer hemostasia local adicional. 

Tratamento preventivo e cuidados na higiene oral 

A manutenção da saúde bucal depende não só do acompanhamento profissional, como também da cooperação do paciente.  

Nesse sentido, orientações sobre higiene oral, compreendendo o ensino das técnicas de escovação e o uso do fio dental são fundamentais. 

O paciente também deve ser informado de que, mesmo na presença de sangramentos, a higiene oral deve ser mantida, visando a preservação da integridade periodontal.  

Para pacientes com alto risco de cárie ou aqueles provenientes de regiões onde não há fluoretação da água, o bochecho com solução de fluoreto de sódio pode ser indicado. 

Cuidados no tratamento periodontal 

Um dos tratamentos mais realizados em portadores de hemofilia é o da doença periodontal. 

Talvez pelo fato de que, devido ao receio de sangramento, os pacientes temem a ida ao consultório odontológico, o que prejudica a saúde oral, consequentemente comprometendo a integridade do tecido periodontal.  

A raspagem dental deve ser iniciada pela região supra gengival, com reforço da orientação de higiene oral, e após a redução do processo inflamatório deve-se iniciar a raspagem subgengival por quadrantes, dividindo em mais de uma sessão.  

Eventuais sangramentos causados por raspagem podem ser controlados localmente com compressão de gaze embebida em antifibrinolíticos, bolinhas de algodão embebidas em ácido tricloroacético a 10%, cimento cirúrgico e, se necessário, a administração de antifibrinolítico via oral.  

A cirurgia periodontaĺ deve ser indicada somente quando o tratamento conservador não tiver obtido sucesso, pois deve ser considerada como procedimento de elevado risco de sangramento. 

Sendo assim, geralmente, nesses casos há́ necessidade do preparo prévio do paciente, com indicação da reposição dos fatores de coagulação e da associação dos antifibrinolíticos.  

Cuidados no tratamento restaurador 

Nos procedimentos restauradores deve-se ter cuidado ao utilizar grampos, matrizes e cunhas de madeira para evitar sangramentos gengivais; assim como sugadores de alta velocidade, pois podem ferir a mucosa no assoalho bucal e causar hematoma.  

Também é recomendada a utilização de isolamento absoluto do campo operatório, afastando lábios, bochechas e língua, com intuito de proteger o paciente de lesões que possam ser causadas por instrumentos cortantes.  

Cuidados no tratamento endodôntico 

O tratamento endodôntico não causa grande risco de sangramento e pode ser realizado de forma convencional.  

Em casos de pulpectomia, é importante que o procedimento seja feito cuidadosamente, com o comprimento de trabalho do canal radicular calculado, para assegurar que os instrumentos não ultrapassem o ápice.  

A presença de sangramento no canal pode indicar a existência de tecido pulpar remanescente.  

Nesses casos, é indicado o uso de agentes formalizantes, irrigação com solução de hipoclorito, bem como a compressão intracanal com pasta de hidróxido de cálcio. 

Geralmente, o tratamento endodôntico não exige reposição dos fatores de coagulação, a não ser em casos em que a técnica anestésica do bloqueio do nervo alveolar inferior seja necessária.  

Cuidados no tratamento protético 

Na maioria dos casos, os procedimentos protéticos não envolvem risco de sangramento.  

Contudo, recomenda-se cuidado durante a realização da moldagem para que não haja formação de hematoma, além de um ajuste minucioso para reduzir o trauma aos tecidos moles.  

Se uma prótese parcial for indicada, é importante que seja feita a orientação de higiene bucal para que a saúde periodontal dos dentes remanescentes seja mantida.  

Cuidados no tratamento ortodôntico 

Apesar de não haver contraindicações para o tratamento ortodôntico em pacientes portadores de coagulopatias, recomenda-se cuidado na colocação de bandas subgengivais e bráquetes para que não haja trauma nos tecidos moles. 

Para o paciente, além da manutenção de uma boa higiene oral, indica-se a utilização de cera para proteção, sempre que houver necessidade.

Cuidados no tratamento cirúrgico 

Entre os procedimentos odontológicos, as cirurgias são as que oferecem maior risco de sangramento e complicações para o paciente com coagulopatias hereditárias. 

Por isso, o médico do paciente deve ser consultado antes que qualquer tratamento seja executado e o fator risco/benefício deve ser avaliado. 

A cirurgia oral deve ser realizada somente em casos extremos, por um profissional capacitado ou sob sua supervisão, para que as possíveis intercorrências possam ser devidamente diagnosticadas e tratadas.  

Normalmente é recomendada a extração de poucos elementos dentários em cada procedimento.  

A extração por hemiarcada deve ser considerada como procedimento de alto risco de sangramento.  

Recomendações de extração de terceiros molares também devem ser consideradas como procedimento de alto risco de sangramento, com indicação de reposição prévia de concentrados de fatores de coagulação.  

Não existe uma contraindicação formal para a realização de implantes em pacientes com coagulopatias, entretanto, os implantes devem ser muito bem indicados.  

A sutura deve ser feita de maneira a aproximar ao máximo as bordas da ferida cirúrgica e deve permanecer no local por, no mínimo, 7 dias.  

Mesmo em extrações de decíduos, se houver espaço, deve-se suturar a ferida.  

Métodos de controle local de sangramento podem e devem ser utilizados quando necessário.  

Como a compressão de gaze embebida em antifibrinolíticos, bolinhas de algodão embebidas em ácido tricloroacético a 10%, cimento cirúrgico e, se necessário, a administração de antifibrinolítico via oral.  

Não há́ contraindicações do uso de antifibrinolítico local, mas a indicação do uso sistêmico deve ser feita juntamente com o hematologista.  

É importante ressaltar que a utilização do antifibrinolítico via oral, deve ter início pelo menos 24 horas antes do procedimento cirúrgico e mantida durante pelo menos sete dias. 

Possíveis complicações do tratamento odontológico  

A principal complicação durante um tratamento odontológico é o quadro de hemorragia. Nesse caso, a primeira medida a ser tomada é a identificação da área sangrante e a remoção do coágulo formado.  

Em seguida, medidas locais de controle do sangramento devem ser tomadas de acordo com a situação clínica:  

 Sangramento pós-extração dentária: 

  • Remoção da sutura e curetagem alveolar; 
  • Aplicação de soro fisiológico 0,9%;  
  • Aplicação de outros meios hemostáticos locais, tais como antifibrinolíticos etc.; 
  • Realização de uma nova sutura. 

Sangramentos gengivais: 

  • Utilizar os agentes hemostáticos locais já́ descritos anteriormente;  
  • Gelo no local; 
  • Sutura quando houver laceração tecidual. 

Por fim, podemos perceber que, embora pouco conhecidas, as coagulopatias hereditárias apresentam um número bastante expressivo de indivíduos portadores. 

Sendo imprescindível que o cirurgião-dentista tenha conhecimento sobre as patologias hemorrágicas existentes, bem como manifestações clínicas e possíveis complicações por elas apresentadas.  

Mesmo sabendo que, na maioria dos casos, todo e qualquer tratamento odontológico possa ser realizado, alguns cuidados devem ser seguidos.  

Além disso, sempre que possível, o tratamento desses pacientes deve ser bem planejado pelo cirurgião-dentista em conjunto com o hematologista, visando maior segurança e conforto ao paciente.  

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Talvez você também se interesse por: 

Referências bibliográficas: 

Guyton AC Hall JE. Tratado de Fisiologia Médica. 12 ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2011.  

Brasil. Ministério da Saúde. Normas e Manuais Técnicos: Manual de tratamento das coagulopatias hereditárias. Série A. Brasília, Coordenação Geral de Documentação e Informação, 2006.  

World Federation of Hemophilia (WFH). Report on the Annual Global Survey 2011.  

Brasil. Ministério da Saúde. Estatística e Informação em Saúde: Perfil das coagulopatias hereditárias no Brasil: 2009-2010. Série G. Brasília, Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados, 2012a.  

Brasil. Ministério da Saúde. Normas e Manuais Técnicos: Manual de atendimento odontológico a pacientes com coagulopatias hereditárias. Série A. Brasília, Coordenação Geral de Documentação e Informação, 2008a. 

Brasil. Ministério da Saúde. Manual de atendimento odontológico a Pacientes com Coagulopatias Hereditárias. 2021. 

Marques, RVCF et al. Atendimento odontológico em pacientes com Hemofilia e Doença de von Willebrand. Arquivos em Odontologia, 2010. 46(3): 176-180. 

Resende, RFB. Atendimento odontológico ao paciente portador de hemofilia c: quais são cuidados necessários para um correto atendimento? – revisão de literatura. International Journal Of Science Dentistry, 2019; 51:29-40. 

Pinheiro, YT et al. Hemofilias e Doença de von Willebrand: uma revisão de literatura. Archives Of Health Investigation, 2017; 6(5). 

Publicado por
Profª Dra. Natália Galvão Garcia

Cirurgiã-dentista pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), Mestre, Doutora e Pós-Doutora pela Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB/USP), Professora Dra. do curso de Odontologia do Centro Universitário de Lavras (UNILAVRAS – MG). Atua no consultório nas áreas de Diagnóstico Oral, Cirurgia Oral Menor, Pacientes Especiais e Laserterapia. CROMG: 56425

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